Manias, manias
Desde criança até casar sempre morei com meus pais. Éramos o pai, a mãe e nós, cinco filhos, sendo duas mulheres e três homens. Por ser uma família modesta, não tínhamos muito conforto nem muita privacidade. Mas éramos felizes. Compartilhava-se tudo. Sempre tivemos um banheiro só. Quartos era um dos pais, outro para as meninas e outro para nós meninos. Até aí tudo bem.
A gente pegava tudo um do outro; brinquedos, roupas, material escolar, revistas, enfim, o que se achava pela frente. Não havia muitas brigas nem discussões acaloradas. Só pequenas rusgas e queixas para a mãe, coitada. Algumas choradeiras eram inevitáveis. Acostumados àquele regime “comunista” forçado, a gente se resignava ante o desaparecimento de algum objeto pessoal (se é que se tinha).
Quando não achávamos algo que fosse pessoal nosso, perguntávamos aos outros irmãos se o tinham visto ou pegado. Como ninguém tinha notícia dele, ou mentia que não tinha, a gente esquecia. Lá um certo dia, notávamos que um irmão estava usando aquilo que “era” nosso. Depois de adultos, se tentava ter alguma privacidade, o que nem sempre se conseguia. Todos sobrevivemos e nos queremos muito bem até hoje. Aliás, nos amamos muito.
Depois de casado, tendo o meu próprio lar, com a minha mulherzinha, evidentemente, pensei: agora sim vou organizar as minhas coisinhas. Aliás, organizar não é a uma palavra muito adequada a minha pessoa. Talvez reuni-los e tê-los meio à mão, em algum lugar que eu os visse ou soubesse. Sei lá! Não sou excêntrico. Pelo contrário, até me considero simples. Meus gostos consistiam, como até hoje, em livros, discos, bebidas, material esportivo, para churrasco e bugigangas.
Sem aquelas loucuras de solteiro, imaginei que teria minhas quinquilharias num lugar certo. Ingenuamente, pensei quê, se eu respeitasse a privacidade da minha mulher, ela respeitaria a minha. Eu não sabia que toda mulher, quando casa, quer o seu lar arrumadinho e organizado do seu jeito. Passei de novo a não achar minhas coisas. Mas tudo se resolvia simples e rápido, bastava eu lhe perguntar e, de pronto, o objeto almejado aparecia. Com a convivência, ela foi conhecendo melhor as minhas manias e procurava deixar tudo meio ao meu alcance.
Por que diabos as mulheres gostam de engavetar tudo? Que mal tem um livro, uma garrafa, chinelos ou chaves no meio da sala ou em cima de uma mesa, se eu vou usá-los logo? Mas não! Elas têm que esconder tudo. Muitas vezes tive medo que ela me encerrasse num armário, só pra não me ver de lá pra cá. Com o tempo a gente se acostuma. Mas aí vêm filhos e netos. Começa tudo de novo. Ainda têm as domésticas, que são mulheres, e fazem tudo igual. Pra dizer que tá tudo arrumadinho e poder ir logo pra casa. Leva-se um tempão para ensiná-las. Um dia elas se vão. E vem outra. Tudo se repete. A propósito, onde andará aquele meu livro do Voltaire?