Grupo de pesquisa Botos do Araranguá investiga prática comum no estuário araranguaense até os anos 2000 e que voltou a acontecer após duas décadas
A pesca da tainha em parceria com os botos é uma prática registrada em pouquíssimos lugares do mundo. Em Santa Catarina, a relação entre o boto pescador e o homem é mais conhecida na região de Laguna. Contudo, nos últimos anos, essa interação foi novamente registrada mais ao sul do estado. Depois de duas décadas, a foz do Rio Araranguá voltou a receber esses visitantes, que além de encantarem a população, também ajudam na captura dos peixes com a tarrafa.
Mas como ocorre essa interação homem-animal? O boto cerca o cardume e o leva até a costa, onde se encontram os pescadores. Quando os peixes já estão encurralados, o boto chama a atenção com um comportamento diferente – geralmente ele bate com a cabeça ou com a nadadeira na água. Esse é o sinal para o pescador jogar a tarrafa no local indicado pelo cetáceo. Durante o instante que se segue após essa ação, os peixes ficam desnorteados, o que facilita para os botos a captura dos peixes que conseguiram escapar da rede. Um ajuda o outro a pescar.
Por mais extraordinário que possa parecer, essa prática era uma atividade comum para os moradores da cidade de Araranguá, no Sul de Santa Catarina, até o começo dos anos 2000. Entretanto, repentinamente os botos deixaram de aparecer nas águas do estuário araranguaense, o que levantou muitas dúvidas do porquê desse acontecimento. Vinte anos depois, com sede de responder a essa pergunta, um professor e um aluno de biologia se uniram para fundar o projeto Botos do Araranguá, e o fato mais impressionante dessa história: o início da pesquisa coincidiu com o reaparecimento dos botos.
Rodrigo Machado é professor de biologia e estuda sobre mamíferos marinhos há mais de duas décadas. Em 2019, começou o pós-doutorado em biologia animal na Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc). Mais ou menos nessa época, um aluno – Lucas Bertoncini – demonstrou interesse pelo estudo dos botos. Juntos, eles conseguiram vídeos com relatos dos pescadores e começaram a planejar o projeto.
O professor conta que o início da pesquisa foi realizado em sala de aula e, em 2023, os pescadores locais relataram a presença de botos no estuário do Rio Araranguá, um evento que chamou a atenção dos observadores. Ele explica que as informações sobre a presença dos botos vieram dos próprios pescadores, e que foi confirmada em abril do mesmo ano através de uma live no Instagram. Com esse registro, Rodrigo convidou Lucas para irem ao local no dia seguinte.
“A gente falou com um pescador, chamado Sidnei, e ele disse que os bichos tinham aparecido. Depois de umas quatro horas de observação, surgiram os botos e nós já levantamos o drone, e fizemos um registro fantástico de quatro bichos pescando com os pescadores”, complementa Rodrigo.
Os botos são identificados individualmente e recebem nomes
Segundo a acadêmica e integrante do grupo de pesquisa, Nadine Saraiva de Souza, os botos possuem uma nadadeira dorsal, que é como se fosse a “impressão digital” desses animais. Por meio da fotoidentificação, os pesquisadores conseguem catalogar cada indivíduo através das marcas e cicatrizes no dorso. “Fazer os registros com a câmera fotográfica é um trabalho difícil, já que os botos submergem e voltam à superfície com muita rapidez, o que prejudica a nitidez das fotos”, comenta.
Os botos também possuem “vozes” diferentes. Eles se comunicam pela ecolocalização, ou seja, por um processo de emissão de ondas ultrassônicas gerados por animais de baixa visão – como os botos e os morcegos –, o que permite com que eles consigam se localizar, sem necessariamente enxergar. Através dessas diferentes frequências de ondas, é possível identificar as espécies com um hidrofone.
Para identificação, os pesquisadores nomeiam os botos com códigos contendo o nome da cidade e um número sequencial. Como os animais visitam diversas praias catarinenses durante o ano, a acadêmica Letícia Vaz franco Fernandes realiza o trabalho de analisar fotos dos bichos e cruzar os dados, a fim de registrar devidamente os cetáceos em Santa Catarina.
Quando é possível avistar os botos no litoral catarinense?
O professor pontua que os botos são sazonais, ou seja, assim como as baleias, eles podem ser avistados em lugares diferentes dependendo da estação. O melhor período para avistamento dos botos, tanto em Araranguá quanto em Laguna, é na época de veraneio. “Os botos vêm mais no verão aqui para a região de Araranguá e no inverno eles ficam mais por Torres. Toda espécie tem uma área de ocorrência. Essa, particularmente, é muito costeira”, explica Rodrigo.
Segundo ele, há duas espécies de botos na região. “O Tursiops gephyreus é mais costeiro e o Tursiops truncatus prefere o mar aberto. Ambas as espécies ocorrem aqui na região Sul do Brasil”, complementa.
Outras pesquisas
Apesar de o projeto liderado pelo professor Rodrigo ser uma iniciativa recente, no município de Laguna, a 120km ao norte de Araranguá, há uma equipe de pesquisadores que realiza o monitoramento da população de botos na região há quase 20 anos. Coordenado pelo professor Fábio Daura-Jorge, do Departamento de Ecologia e Zoologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o grupo documentou pela primeira vez a prática de pesca com botos em 2023, em parceria com a Oregon State University (OSU), nos Estados Unidos, e o Max Planck Institute (MPI), na Alemanha.
Texto: Mariana Machado (Jornalismo)